Um conto de fadas sobre como ser cego em redes sociais é um constante exercício de “eu não tenho…
Um belo dia, eu participava de um grupo no Facebook com pessoas politizadas, muito bem, obrigado, que, em não sabendo da falta de…
Um belo dia, eu participava de um grupo no Facebook com pessoas politizadas, muito bem, obrigado, que, em não sabendo da falta de acessibilidade, ficaram chocadas quando eu finalmente expus meu sentimento de exclusão, pois nenhuma imagem do grupo era descrita.
Chegou uma hora em que pensei: “chega, basta, muda Brasil”. Expliquei a situação e, para minha enorme surpresa, fui muito bem recebido na minha reivindicação. O grupo em questão passou a adotar práticas de descrições de imagens obrigatórias nas postagens. CONSTAVA ATÉ NAS REGRAS DO GRUPO.Tinha até coleguinha que ia lá na postagem do amiguinho cobrar a descrição que faltou.
Nota: Acessibilidade é isso mesmo. Você, sem deficiência, também pegar pra si a responsabilidade de não apenas oferecer, mas também exigir acessibilidade. Porque se depender só de quem é pessoa com deficiência, , a gente está ferrado.
Decorre que, desse grupo, fiz vários colegas e amigues. E qual não foi minha alegria ao perceber que essas pessoas estavam descrevendo imagens não só dentro do grupo, como também nas suas próprias timelines pessoais. Pensei: afinal de contas, abrir a boca vale a pena.
Só que nós sabemos que amizades vêm e vão. Acabei me distanciando de muita gente dessa época. Primeiro, porque sou misantropo (e isso eu que me resolva com minha psicóloga, coisa que tenho tentado há 04 anos). E nem se trata simplesmente de eu ter me afastado por não gostar mais dessas pessoas (embora de algumas eu queira realmente distância). A grande maioria delas tenho como grandes camaradas com quem compartilhei muita coisa e com quem aprendi muito.
Mas a vida segue e a gente sabe que relações via internet são fugidias. Isso somado à minha misantropia, aí foi que o barraco desabou… Porque, depois que a relação não se resumia mais aos meandros dos grupinhos do Facebook (inclusive, nem tenho mais perfil lá), eu fui percebendo que quanto mais eu me afastava dessas pessoas, menos elas descreviam os conteúdos que publicavam.
Isso me entristece sempre muito. Reparem, pra mim, só soa como: “então quer dizer que você só descrevia imagens por minha causa? Então, você acha que a única pessoa cega que merece acesso ao seu conteúdo era eu?”
Hoje, o que percebo, lamentavelmente, é que se você é cego, precisa manter sempre relações muito estreitas com as pessoas, pra que elas comecem a achar que acessibilidade vale a pena. Do contrário, elas acham que é perda de tempo. “Afinal de contas, se o único conhecido cego que eu tinha já não me segue mais, não tem pra quê eu perder tempo descrevendo imagem, não é mesmo?”
Não passa pela mente da galera que existe um monte de usuários cegos querendo acessar seu conteúdo, mas não pode, só porque você não tem nenhum amigo cego pra se dignar a acessibilizar o que você publica.
De modo que, apesar de eu não estar mais lá naquele grupo do Facebook, noto que pessoas que lá conheci não descrevem mais as imagens que postam, pois nossos laços se afrouxaram. Isso é muito, muito injusto, pois pressupõe que eu tenha que estabelecer laços de intimidade com todo mundo se eu quiser ter uma timeline acessível pra mim.
E é mais injusto quando eu paro para pensar que essa atitude comunica, ainda que venha de pessoas que eu sei que gostam de mim: “a gente só vai se importar com acessibilidade na medida em que tivermos pessoas com deficiência no nosso círculo íntimo.” E as outras pessoas com deficiência que gostariam de consumir o conteúdo que você publica mas que não querem necessariamente ser seus best friends? Elas não merecem ter acesso ao que você publica? Seu conteúdo é acessível só às pessoas com deficiência da sua rodinha de chegados?
De modo que toda essa minha “choradeira”, alguns diriam, é pra PEDIR: pessoas que tinham pessoas com deficiência entre seus amigos e, por isso, acessibilizavam, mas pararam de fazer depois que essas pessoas se afastaram, NÃO SEJAM ASSIM. Pois, com essa atitude, o que você comunica é:”Sidney, pra eu continuar acessível, você vai ter que ser meu amigo pra sempre.” Nem eu nem ninguém pode assinar esse tipo de contrato, as relações humanas são mais complexas do que isso. Parece óbvio.
E, se eu sou obrigado a manter uma relação contigo só para garantir que você seja acessível, me desculpe, colega, isso não é amizade, isso é chantagem. Eu inclusive vou ter que arcar com a sensação, em me afastando de você, de ser responsável por uma pessoa acessível a menos no mundo. Por um conteúdo acessível a menos que outras pessoas com deficiência poderiam usufruir, mas não vão, só porque você condiciona sua acessibilidade a ter um amigo com deficiência.
Há muito tempo eu advogo nas redes sociais por atitudes mais acessíveis, mas se você condiciona ser uma pessoa acessível só porque é meu amigo, desculpe informar, sua mentalidade não é de fato uma mentalidade acessível.
E eu sei que esse desabafo atinge um monte de gente que eu gosto, e é bom que atinja mesmo. Eu sei que deve ser desconfortável pra você sem deficiência que gosta de mim ler tudo isso. E é pra ser mesmo. Mas pense o quão desagradável é pra mim pra mim saber que você parou de descrever as imagens que publica só porque a gente não conversa mais 3 vezes por dia pelo Zap ou por DM.
É como se, para a acessibilidade ser efetivada, eu fosse obrigado a ser amigo de todo mundo. Amizades vêm e vão. E é muito cruel cobrar de uma pessoa com deficiência que ela mantenha relações de qualquer natureza pelo bem da bandeira que levanta.
Assim, enfim, meu pedido é: descreva, transcreva, legende seus conteúdos sem precisar ter um amigo com deficiência. Porque essa dependência é mais uma carga que a pessoa com deficiência vai ter que carregar quando perceber que quase nada é acessível.
Reparem que, até agora, estou falando de pessoas que, me conhecendo, resolveram mudar suas atitudes e passar a descrever imagens. Mas pararam de fazer depois de um tempo. Isso é muito mais comum do que eu gostaria de admitir. Mas há outra camada do problema. Tem amigos que sabem da minha necessidade de acessibilidade e sequer se mexem para isso. Como se não fosse problema delas, como se falta de acessibilidade fosse só problema meu.
Perdi a conta de quantos amigos, virtuais ou não, me pedem pra seguir, curtir, compartilhar o que fazem nas redes. Eles sabem que eu não enxergo, isso não é segredo pra ninguém que me conhece. Mas chego lá, e cadê a descrição de imagens? Perceba: não importa se você é meu namorado, amigo, irmão, Jesus Cristo. Se eu não sei o que você publicou, eu não vou me engajar nem curtir, compartilhar, nem o raio que o parta.
Afinal, o que quero dizer é: VOCÊ TEM QUE TORNAR SEU CONTEÚDO ACESSÍVEL, não importa se conhece ou não alguma pessoa com deficiência. Mas se você conhece uma PCD, mais ainda, sob o risco de perder uma grande amizade. Porque, sinceramente, se eu percebo que um colega ou amigo está cagando para a minha luta em prol do meu acesso, essa pessoa não permanecerá no meu círculo de amizade por muito tempo, não.
Acessibilidade deve, precisa ser uma mentalidade universal. A desculpa de “ah, eu não descrevo porque não sei se algum cego vai ler” não cola, é só sua justificativa para a preguiça de adotar hábitos mais acessíveis. E isso implica justamente na inversão cruel da lógica capacitista: “eu não descrevo porque ninguém cego me segue”. Entenda: é justamente o contrário. Ninguém cego te segue porque você não descreve nada.
P.S.: Usei o termo “pessoa com deficiência” de maneira genérica, apesar de estar tratando apenas das minhas questões com o meu caso particular de ser uma pessoa cega, justamente porque é possível extrapolar o raciocínio para os demais tipos de acesso que contemplam os diversos tipos de deficiência. Embora, obviamente, seja necessário ressaltar que cada deficiência exige uma dinâmica de acessibilidade diferente. De maneira que é preciso também guardar as devidas proporções, caso você aplique este raciocínio para outros tipos de deficiência.