Como fazer boas descrições de imagens para pessoas cegas nas redes sociais
Segura na minha mão e vamos...
Os contextos mudam e as perspectivas se transformam. Atualizo novamente estas breves instruções (a primeira vez foi neste texto, e depois neste outro), para incentivar o hábito acessível de descrever as imagens publicadas por usuários regulares em suas redes sociais pessoais.
SUMÁRIO
O Leitor de Tela
O Texto Alternativo
Como começar a descrever
O que não fazer
Descreva cores, sim
Descrição de vídeos (para quem compartilha e pra quem produz)
Ah, meu deus, mas e a linguagem neutra?!
Quantidade de detalhes e selfies
Afinal, que vantagens há em pensar nisso tudo???
1. O Leitor de Tela
Eu sou cego. Usuários cegos ou com baixa visão lançam mão de ferramentas de acessibilidade para frequentar os mesmos ambientes virtuais que pessoas sem deficiência visual. Uma delas é o LEITOR DE TELA.
O leitor de tela reconhece o material textual na tela em que estou navegando e o transforma em fala, por meio de vozes sintetizadas, como aquelas do Google Tradutor e as dos aplicativos de mapas em geral.
Esse programa , porém, apenas lê. Então, se eu passo com ele sobre uma imagem, ele só conseguirá me informar que se trata de uma imagem.
Atualmente, inteligências artificiais embutidas em aparelhos e aplicativos já são capazes de gerar automaticamente uma lista provável de elementos possíveis nas imagens. Mas isso não significa que essa descrição automática seja útil. Ela não fornece contexto e nem está ainda avançada o bastante para ser plenamente confiável.
Ainda é preciso que humanos descrevam suas imagens..
2. O Texto Alternativo
Via de regra, as descrições de imagens, na navegação da web, se aplica como “texto alternativo” ou “alt text”. Em sites, é comum haver uma camada invisível dentro de uma imagem na qual o programador ou mesmo a pessoa que vai publicá-la inclui um texto que não aparece visivelmente, mas que é legível para o leitor de tela. Esse recurso, portanto, é o espaço que geralmente se utiliza para descrever a imagem em questão, de modo que, quando meu leitor de tela passar por lá, ele não lerá apenas o nome do arquivo da imagem, mas a descrição que o autor inseriu no seu texto alternativo.
Agora, algumas redes sociais já disponibilizam o campo de texto alternativo para que os usuários façam isso. Aqui estão alguns tutoriais disponibilizados pelos próprios aplicativos mostrando como fazer:
Mas não haver o espaço do texto alternativo não deve ser razão para desistir. Você sempre poderá usar o próprio espaço da publicação para incluir a descrição da imagem.
3. COMO COMEÇAR A DESCREVER
Descrever é traduzir imagens em palavras. E pra que essa tradução fique bem organizadinha, é sempre bom seguir o seguinte:
Tente não opinar. A função da descrição é promover o acesso à imagem, não ao seu ponto de vista;
Tente não explicar. Deixe que a pessoa tire as suas próprias conclusões;
Tente ser objetivo. Descrições longas sobrecarregam a pessoa e podem até fazê-la desistir de ler;
Tente ser coerente. Toda imagem tem uma intenção, se a intenção é cômica, a linguagem da descrição pode ser cômica também. Mas não exagere. Escolha as palavras de acordo com o tom da imagem;
Antes de tudo, identifique a imagem. Exemplo: “Foto colorida de ambiente externo”; “Foto em preto e branco de ambiente interno”, “Gif animado”, “Selfie”, etc.
Vá do geral para o particular. Comece dando um panorama do que se trata a imagem, para depois passar aos detalhes;
Pode ajudar se você responder: Quem (ou o quê( faz que ação, de que maneira, onde e quando?
Use os verbos no tempo presente.
EXEMPLO:
Foto colorida de ambiente externo. É dia. Com a mão direita no bolso da calça, estou apoiado com as costas no poste preto de um semáforo, no canteiro central de uma avenida. Acima da minha cabeça há uma placa amarela com o aviso: "Ciclista, só atravesse no verde". À esquerda e à direita, vêem-se as faixas de pedestre. Eu sou um homem de pele bege-clara, cabelos pretos raspados e barba desgrenhada. uso calça preta, camiseta marrom, óculos escuros e seguro minha bengala estendida com a mão esquerda. Ao fundo, edifícios de diversos tamanhos e muitas pessoas caminham.
4. O que não fazer
Durante algum tempo no passado, tags como #paracegover, #paratodosverem, #imagemacessivel, #acessibilidade, entre outras, foram utilizadas pois, de um jeito ou de outro, elas geravam conscientização. Mas, atualmente, para além dos problemas conceituais dos termos em questão, esse tipo de sinalização não ajuda muito. Às vezes, até atrapalha.
A estrutura do texto dada no exemplo acima já é o suficiente para identificar que se trata de uma descrição de imagem. Portanto, é desnecessário o uso de qualquer outro sinalizador, seja em texto ou numa hashtag. Além do mais, o contexto de estar dentro de um texto alternativo, já indica que se trata de uma descrição.
Também já li por aí descrições de imagens que se utilizam do expediente “Início da descrição” e “Fim da descrição”, cuja origem me escapa completamente. Deveria ser óbvio deduzir que pessoas com ou sem deficiência visual, ao lerem algo como o exemplo dado acima, são completamente capazes de identificar sozinhas quando a descrição começou e terminou. Não é de bom tom.
Ah, e antes que eu me esqueça, ao descrever uma captura de tela de uma conversa em texto, não vale só dizer “Print de uma conversa no Whats App entre fulano e sicrano”. Até porque, francamente, achar que isso está me informando algo de relevante é puro delírio. Quando o conteúdo da imagem é textual, obviamente, a descrição tem que reproduzir o texto na íntegra.
5. Descreva cores, sim
Nem toda pessoa cega sempre foi cega. As cores continuam sendo relevantes para as construções de sentido de pessoas que perderam a visão e possuem memória visual.
Mas as cores também são importantes para pessoas que nunca as enxergaram. Elas englobam significados socialmente construídos, que também são aprendidos por quem não as vê. Por exemplo, ao descrever uma foto de casamento, na qual culturalmente esperamos que o vestido da noiva seja branco, a quebra de expectativa se o vestido da noiva for vermelho será tão significativa pra quem enxerga quanto pra quem não enxerga, isso porque a convenção social nos faz esperar que todo vestido de noiva seja branco. Dizer que a folha é verde significa algo totalmente diferente de dizer que a pele de alguém está verde. Cores carregam sentidos diferentes em contextos diferentes, e isso é importante para as descrições.
No mais, também descrever cores vale como modo de referenciar uma imagem. De repente eu quero pedir, “Migo, me manda aquela foto que eu to de camisa azul no shopping.” É mais um elemento que dá identidade à imagem, e pessoas cegas também precisam desses identificadores.
6. DESCRIÇÃO DE VÍDEOS
(PARA QUEM COMPARTILHA E PRA QUEM PRODUZ)
No contexto do campo audiovisual, a audiodescrição consiste em uma faixa de áudio incorporada no vídeo na qual um locutor aproveita os silêncios para descrever os aspectos visuais relevantes das cenas. Ou seja, audiodescrição é um campo de produção de conteúdo muito elaborado e trabalhoso, de modo que seria ingênuo eu esperar que pessoas leigas audiodescrevam os vídeos que produzem e publicam.
Mas não custa nada, ao compartilhar aquele videozinho, acompanhá-lo de um textinho descrevendo, em linhas gerais, as informações visualmente relevantes pro entendimento do conteúdo. Daí, eu posso ler e depois dar o play sem me sentir completamente perdido.
Do lado de quem produz, mas não pode orçar um serviço de audiodescrição para seus vídeos, dá pra tomar algumas atitudes menos excludentes também. Por exemplo, não deixar informações relevantes apenas visualmente: “Você pode ligar pro número que tá aparecendo aqui embaixo do seu vídeo”. Em vez disso, que tal exibir o número no vídeo e, mesmo assim, enunciá-lo.
Parta sempre do pressuposto de que, pasme você, nem todo mundo que te assiste consegue te enxergar, e isso é um fato. Tem muita gente cega na internet, ainda que invisibilizadas pela falta de acessibilidade. Tente sempre oferecer mais de um modo de acessar a mesma informação.
7. Ah, meu deus, mas e a linguagem neutra?!
Em primeiro lugar, sendo curto e grosso, pare imediatamente de usar X e/ou @ para neutralizar o gênero. Não é acessível nem para quem tem deficiência visual, nem para qualquer falante da língua portuguesa. Atrapalha a leitura, sim. Além do mais, não dá pra verbalizar isso, oralmente falando, saca? Não rola mesmo pra ninguém.
Mas isso não significa que você pode se valer da acessibilidade para justificar sua transfobia. É preciso, sim, aderir a maneiras mais inclusivas de se expressar de acordo com as identidades dos sujeitos e não vai ser uma pessoa cega que reclama da estranheza ao ouvir palavras neutralizadas o seu salvo conduto para blindar seu preconceito.
Pessoas com deficiência visual, tanto quanto quaisquer outras pessoas, devem acompanhar a transformação da língua que, por ser viva e mutável, vai mesmo se alterar para acomodar as necessidades de seus falantes. Atualmente, já há várias alternativas que são, tanto na escrita quanto na oralidade, absolutamente viáveis. Bora aprender e parar de reclamar.
8. QUANTIDADE DE DETALHES E SELFIES
Sabendo que o básico de uma descrição boa é ser objetiva, muita gente se preocupa com o excesso de detalhes. E, sim, uma descrição muito longa e excessivamente detalhada é cansativa e desmotiva o seu amigo cego de lê-la até o fim.
É sempre importante ter em mente que toda imagem tem uma intenção. Mesmo se for uma selfie. Se a sua selfie quer mostrar a estampa da sua blusinha, descreva-a. Se a sua selfie quer mostrar a estante cheia de colecionáveis atrás de você, descreva-os. Se você fez a foto, você, melhor do que ninguém, sabe o que quer mostrar com ela. Descreva o que quer mostrar, transmita a intenção da sua foto.
9. Afinal, QUE VANTAGENS HÁ EM PENSAR NISSO TUDO?
A acessibilidade não é um favor, é uma mentalidade inclusiva que acolhe a diversidade e enriquece quem faz e quem recebe.
Já cansei de ouvir: “eu não descrevo nada porque não conheço ninguém cego”. Ora, que motivos eu teria pra te seguir, se todo o seu conteúdo é inacessível? Não espere ter um amigo cego pra começar a descrever. Descreva primeiro, pois aí você terá aberto o caminho para fazer amigos que também sejam cegos.
Pensar de maneira acessível é um hábito que qualquer pessoa deve desenvolver. Ferramentas, leis, estruturas só serão acessíveis se as pessoas que as fazem são acessíveis. Também é a atitude acessível que predispõe os sujeitos para a diversidade, que faz com que alguém acolha a diferença sem as barreiras impostas pelos preconceitos. E isso não serve só para pessoas com deficiência, mas para a humanidade inteira.
Sou novo por aqui e ainda não sei quais são as possibilidades de acessibilidade do Substack. Mas espaço pra colocar descrição das imagens nos textos é o que não falta, né? Aliás, quer exercitar um pouco me dizendo se você faria diferente a descrição da foto que usei de exemplo ali em cima, que tal? É só me responder este e-mail normalmente.
Também aceito sugestões e críticas pra melhorar por essas bandas. Pareço estar enrolando, mas a “Fui Impactado” não vai ser uma newsletter de coisas sobre deficiência, embora eu aborde essas coisas inevitavelmente, por ser PCD. A intenção aqui é escrever minhas reações a filmes, séries, livros, podcasts ou qualquer coisa cultural que me deixe IMPACTADO. Inclusive, se você quiser me sugerir títulos para eu reagir, eu aceito sugestões.
Me ajuda a espalhar?
As outras versões deste texto foram muito divulgadas e acessadas, mas elas estão ultrapassadas. Os meios mudaram também. Eu já até tive blog, menina! Eu
costumava compartilhar o que escrevo no Facebook, depois no Twitter, os quais não frequento mais. Daí, apareceu o Medium, que eu ainda tenho, mas que provavelmente vou abandonar também. Então, se você achar que esse conteúdo é relevante e merece alcançar mais pessoas, por favor, compartilhe entre seus leitores/seguidores/amigos. Quanto mais gente for impactada, melhor.
No Instagram, você me encontra com o @DERIDEVIO, bem como em qualquer outra rede em que eu ainda circule. A @ é sempre a mesma.
Muito obrigado por ler até o fim.
Um abraço e até o próximo impacto.
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